(Carlos Lyra)
Caros amigos,
No excelente livro de Miliandre Garcia "Do teatro militante à música engajada" da Editora Fundação Perseu Abramo, lançado em 2007, há uma transcrição de uma entrevista minha a Afrânio Nabuco, repórter do Jornal Metropolitano, datada de 1960, que diz o seguinte: "Carlinhos Lyra considera tanto Noel quanto Caymmi ou Ary Barroso, totalmente ultrapassados. Apesar de possuírem algo de belo, não conseguem eles transmitir alguma coisa que realmente se infiltre no sentimento musical moderno. Possuem eles somente o poder de descrição, não conseguindo dizer algo de maneira coloquial."
O repórter usou de um sistema muito comum no meio jornalístico, de dizer o que pensa através da boca de outros inteiramente inocentes. Chamo isso de "o truque do ventríloquo". Tenho a declarar que em 1954, quando eu aprendia violão, as músicas que eu mais tentava tirar e tocar eram exatamente a do "ultrapassado" Dorival Caymmi, que até hoje reputo como um dos maiores compositores que conheço. Em 1959, pedi a outro "ultrapassado" Ary Barroso, que escrevesse a contra-capa de meu primeiro disco, o que ele fez satisfazendo um de seus maiores fãs, por ele tão influenciado. Isso sem falar de uma de minhas primeiras músicas, "Maria Ninguém", composta em 1956, exatamente inspirada em "João Ninguém" de autoria de mais um "ultrapassado", Noel Rosa. As asneiras do texto acima referido não condizem com minha maneira de pensar, ou mesmo de falar e escrever, como as do ventríloquo em questão. Pena só ter tido conhecimento dessa matéria, 50 anos depois, pelo livro de Miliandre.
Ainda no livro, há outros tópicos que gostaria de esclarecer, uma vez que depois do golpe militar de 64, a imprensa não teve a menor consideração com quem não fosse "sucesso de público". Os tópico são:
· "Carlos Lyra depois de 64, viajou com Stan Getz em turnês internacionais."
Realmente excursionei com Stan Getz pelos EUA, Europa, Japão e México, inclusive Brasil, onde eu só interpretava minhas próprias músicas, acompanhado pelo grupo de Getz e, também, divulgando a música brasileira pelo mundo.
· "Em 66 optou por residir no México... desligado dos acontecimentos do Brasil."
Além de realizar shows por todo México, em cada show insistia em acusar a ditadura militar no Brasil, o que me valeu ser ameaçado, pelo Embaixador brasileiro, de perder meu passaporte.
Ainda no México, em 67, fundei na Universidade, em companhia de estudantes das várias faculdades, um CPC (Centro Popular de Cultura), inspirado no CPC do Brasil, extinto em 1968 com a invasão das tropas na Universidade.
· "A nova esquerda não entendia como um compositor com atuação tão expressiva na década anterior, pudesse produzir "gingles" para propaganda e trilhas sonoras para a TV Globo."
Meu parceiro de "gingles", no México, era Gabriel Garcia Marquez, que na época, também, ajudou a traduzir "Pobre Menina Rica" para o espanhol, a qual montei no Teatro Colonial Mexicano.
Nunca tive a sorte de escrever uma trilha musical para novela (o que teria feito de bom grado, apesar dos patrulhamentos vigentes), sendo apenas autor de várias canções por eles incluídas.
· "Não participou in loco da realização do show opinião nem dos Festivais da Canção."
O show "Opinião" foi, em grande parte, escrito em minha casa, com minhas sugestões para inclusão de Zé Keti e João do Vale, por mim, de certa maneira, "descobertos" e levados para o CPC. As música de Zé Keti e João do Vale foram apresentadas por mim a Nara Leão.
Não participei dos Festivais da Canção, devido a minha concepção, exclusivamente pessoal, de que arte não é esporte e, portanto, não compete.
· "Passou a compreender o mundo e a responder aos problemas sociais, segundo matéria da época, pela ótica da Astrologia."
A Astrologia que eu apresentava era a Sideral, frontalmente oposta a Astrologia Tropical, vigente. A Astrologia Sideral fundada pelo irlandês Cyril Fagan e o americano Donald Bradley, contestam a Astrologia ainda hoje professada que ignora o fenômeno astronômico da Precessão dos Equinócios, onde devido ao movimento dos astros (afirmação que quase leva Galileu à fogueira), as pessoas não nascem, desde o ano 221, debaixo do mesmo signo. O livro que escrevi sobre o assunto foi prefaciado por dois astrônomos e se esta informação científica não interessou às "matérias da época" é apenas mais uma falha cultural do Brasil. Meu interesse por ciência e astronomia não é diferente do de Leonardo da Vinci, Goethe e de tantos outros artistas importantes.
· "Para o público e, sobretudo, a esquerda que então se constituía, o artista tinha, definitivamente, "virado a casaca"".
Quanto a tal calúnia, só posso contestar que além de não ser um comunista arrependido, continuo fiel aos princípios Marxistas (nunca Stalinista, Lenilistas, Fidelistas, etc...), desde 1960 quando compus a música para "A mais valia vai acabar, Seu Edgar" até os dias de hoje.
A mediocridade que se instaurou no país depois do golpe de 64, e que permanece até os dias de hoje em vários segmentos da sociedade, não era um obstáculo fácil de vencer por artistas que além de serem "realmente" de esquerda (não festiva ou patrulhadora), nunca estiveram dispostos a comprometer sua integridade tanto política como cultural e social.
Carlos Lyra